Ele ia apressado, atordoado, pensando em como faria pra quitar todos os seus tantos débitos atrasados. Já era o final do mês e mesmo com a perspectiva de seu ordenado, pouco, aliás, miserável, pelo tanto que trabalhava, fazia e repetia as contas e sabia que não daria conta de efetuá-las. E todo o mês era a mesma coisa, ia feito um malabarista, tentando manobrar esses déficits. Para isso sempre recorria a todo o tipo de artifício, o que o colocava cada vez mais na beirada dum profundo abismo. Trabalhava como gerente de logística. A princípio o emprego parecia bastante promissor, um bom ordenado, trabalho pouco, o que permitia que levasse uma vida folgada. Tinha esposa, dois filhos pequenos e um agregado, o amigo do seu avô, achava justo cuidar do velho companheiro inseparável do vovô Irineu, que não tinha mais ninguém pra zelá-lo. E afinal tinha sido um pedido do finado, antes de falecer por conta da idade elevada. Acontece que a família toda foi-se acostumando a uma vida cada vez mais desregrada. Cheia de excessos os quais ele não podia mais cortar. Com o tempo, o que era um emprego ideal, passou a se tornar apenas razoável, em função do aumento de trabalho e da falta de aumento na remuneração. Trabalhava cada vez mais, o salário não aumentava e as despesas continuavam exacerbadas. E isso ia se sucedendo assim, até aquele momento de onde comecei a contar. O emprego, que era ideal e se tornou apenas razoável, passou a ser detestável e naquele dia ele ia assim atordoado pensando, tentando achar soluções pro seu dilema insustentável. Pensou em fazer uma reunião de família, a esposa tinha que ajudar, poderia encontrar um emprego, mas seria realmente complicado para a Clarinha, tadinha, tão cheia de afazeres domésticos e que tinha se submetido a trabalhar cuidando da casa, e isso já havia muito tempo. Mesmo se ela quisesse seria difícil encontrar algum emprego adequado a seus tão parcos talentos. O seu agregado, Leonardo, vovô Léo, também coitado, tava nas últimas e não conseguia nem sair de casa. Com os míseros trocados que recebia de sua aposentadoria do serviço público, onde trabalhou por mais de trinta anos inseparavelmente ao vovô Irineu, mal conseguia pagar seus remédios para a hipertensão, artrite, diabetes e reumatismo crônicos. Além disso, tinha que pagar consultas a diversos médicos, o que para isso o nosso grande amigo tinha que ajudar. Além desses, eram mais tantos débitos que não poderiam ser adiados. Os dois filhos, pequeninos, sem condição de exigir qualquer apoio, antes pelo contrário, estudavam em escola particular e das mais caras, porque a boa educação dos filhos é fundamental, meu caro e os mimos também, para os filhos, a esposa e obviamente também para o agregado. Fora de cogitação exigir deles qualquer apoio e cortes nas despesas. Sendo assim o que fazer... eis que se deparava com essa situação e enquanto ia caminhando, buscando soluções, de repente olhou pro chão e viu um envelope lacrado, avolumado, um pouco mais adiante. Refletiu se valia a pena parar o curso de sua caminhada, já fazia um tempo que ia e voltava pro trabalho à pé, pra economizar uns trocados. Decidiu se abaixar quando chegou próximo ao envelope lacrado, avolumado, pegou-o e o abriu continuando sua caminhada, porque já estava atrasado. Dentro do envelope ele viu um maço de dinheiro. Teve um sobressalto, parou sua caminhada acelerada, se encostou num canto escondido da calçada e se pôs a contar o montante daquele maço. Completamente embasbacado ele viu que o que havia ali era mais que o suficiente pra quitar todos os seus débitos daquele mês e do subseqüente. E tendo essa constatação, seguiu radiante sua jornada. Aquele mês acabou esplendoroso e o mês seguinte também, os mimos em casa aumentaram e em conseqüência daquilo, a sorte que havia dado, tomou por hábito seguir aquela rotina de caminhadas, mesmo sem necessidades de economizar os trocados. Seguia atento ao chão. Por que apesar do montante que havia ganhado ele sabia que mais pra frente ia voltar tudo como estava, a não ser que de novo encontrasse algo semelhante àquele abençoado envelope com o maço. O tempo ia passando e ele não dava mais aquela sorte, apesar de procurá-la cada vez mais feito um desesperado. Aquilo foi se tornando uma obsessão em sua vida. Saía de casa bem mais cedo pro trabalho e voltava bem mais tarde pra casa, gastando seu tempo procurando outro envelope com o maço. Fazia percursos diferentes e numa outra vez teve sorte, bem mais modesta é verdade, achou uma nota, pouca, para aquilo que procurava. Acabou percebendo que o que o atrapalhava era a obrigação de comparecer e ficar por tanto tempo encalacrado no recinto de seu emprego. Pediu demissão, estava convicto disso. Com aquilo, poderia empregar todo o seu tempo em vasculhar as inúmeras ruas da cidade atrás dos seus tão esperados envelopes com maços de dinheiro. Não contou nada em sua casa, estava certo de seu sucesso naquela empreitada. Com o seu acerto poderia dar curso ao pagamento de seus débitos, pelo menos por algum tempo, além de fazer pequenos investimentos em coisas que o ajudariam a levar a curso aquela sua nova empreitada. Porém, ao contrario do que acreditava, não obteve sucesso. O que o mortificava cada vez mais. E já ali, completamente obcecado, não sabia mais o que fazer. Deixara de se cuidar, ele sempre tão asseado, só tinha pensamento praquela obsessão incontrolável. Não dava mais atenção aos filhos, à esposa e nem mesmo ao agregado. Que começaram a perceber aquilo, o seu comportamento desusado, afinal saia de casa muito mais cedo, voltava pra casa muito mais tarde e sempre maltrapilho, sujo e arredio, como se tornou também. Mas como era do costume dos filhos, da mulher e do agregado, eles não se metiam na rotina do pobre coitado que já não tinha mais como arcar com todas as suas despesas. Era tarde demais para arranjar outro emprego, sem condições como estava por causa de sua enfermidade. Sim, porque aquela obsessão tornou-se uma doença incurável. E devido a isso ele decidiu um dia, sair de casa e não mais voltar. Deixou pra trás os filhos, a mulher e também o agregado, sem pensar nas consequências desse seu ato. Eles que cuidem de si, que eu vou cuidar de encontrar o meu tesouro abençoado. A partir dali, tomou por hábito andar por todo lado, desse modo cabisbaixo, procurando o seu tesouro caído esquecido no chão...
Bom, depois de eu vê-lo algumas vezes andando por ali por onde eu também costumava andar, andando doudamente de um pra outro lado, foi que decidi investigar a sua história e contá-la, nesse conto, desse modo como achei melhor tê-la contado. E ponto.
Bom, depois de eu vê-lo algumas vezes andando por ali por onde eu também costumava andar, andando doudamente de um pra outro lado, foi que decidi investigar a sua história e contá-la, nesse conto, desse modo como achei melhor tê-la contado. E ponto.
(Do livro de contos, "Na beirada do abismo", a ser publicado.)
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